Por um mundo sem lepra
Em Mepapa esteve a Ana Maria a cuidar de dezenas de doentes de lepra. Partilhamos a sua cuidadosa descrição de cuidados:
“Pobres, imensamente pobres! Idades superiores a 40 anos, vários velhinhos e velhinhas. São pessoas doces com um ar resignado, riem com a facilidade e espontaneidade das crianças… sobretudo quando eu digo umas tímidas palavrinhas em Macua. Falam pouco, o que permite concentrar-me melhor no meu trabalho. Ajoelho-me numa esteira à frente deles que estão sentados em plano mais elevado. Basicamente trato dos pés, das mãos, dos olhos, das úlceras, faço-lhes diversos exercícios de fisioterapia. O que eu sinto que eles mais gostam é a parte das massagens com óleo (pés e mãos): fecho os olhos, visualizo os músculos e os nervos e, com toda a minha concentração, enquanto vou massajando “passo-lhes” calor, cor, energia… Sou capaz de sentir o bem-estar que os invade. À minha volta um bando de crianças assiste num silêncio quase religioso: o único som que nos envolve é o vento que vai afagando as árvores…
Chego, a esteira é estendida no chão e aí me ajoelho. Faço as saudações. Riem abertamente!
Então, encho o alguidar com água, um pouco de desinfectante e começo o tratamento dos pés: a pele está tão grossa como a cortiça e é preciso esfregar vigorosamente.
Só o tempo e um tratamento contínuo irá amaciar esta pele e eventualmente restituir-lhe alguma elasticidade – enquanto esta “casca” se mantiver as gretas continuarão a acontecer e através delas as úlceras, as infecções, algumas das quais até ao osso… Com muito cuidado, vou movendo e esticando os dedos dos pés que ainda existem de forma a activar as articulações e também a articulação dos tornozelos é exercitada. De seguida, começo a untar os pés com óleo, sempre tendo o cuidado de o fazer com a pele molhada, para que a hidratação seja o mais contínua (duradoura) possível. É também o momento de fazer uma boa massagem: planta dos pés e tornozelos.
À minha volta encontra-se habitualmente um “ramalhete” de crianças que me seguem de cubata em cubata e que observam o meu trabalho com a maior atenção. O silêncio é toral., ouve-se apenas o vento que afaga as árvores e eu procuro que através das minhas mãos seja transmitida uma sensação de bem-estar.
O passo seguinte é tratar das úlceras (a maior é parte nas pernas): limpá-las muito bem, aplicar-lhes pomada e depois enrolá-las em gaze para as proteger do pó e das moscas.
Enquanto as mãos estão “de molho” é a vez de tratar dos olhos – lavar com água fervida (os que estão infectados) pôr gotas e/ou pomada e passar à fase dos exercícios.
É muito frequente o doente de lepra não pestanejar, o que significa que a vista não é lubrificada e portanto rapidamente se irrita e se inflama com qualquer grão de poeira.
O nosso automático “abrir e fechar de cortinas” protege também os olhos dos excessos da luminosidade e do vento. Como este automatismo não acontece com o doente de lepra temos que o pôr a pestanejar o mais frequentemente possível – esse é um dos exercícios que faz parte dos meus cuidados. E um dos objectivos a atingir será pôr os nossos doentes a pestanejar com regularidade criando através da força de vontade mecanismos como por exemplo: pestanejar de cada vez que vê uma árvore ou que mete comida na boca.
Finalmente passo às mãos que entretanto já estão um “pouco” macias (nunca estão tão “cortiça” como os pés). O procedimento é idêntico: passar óleo, massajar, exercitar, dobrar os dedos que não estão paralisados, estica-los devagar um a um, mover as articulações.
Enfim, esta é de uma forma geral a rotina de cada tratamento. Gostaria de vos transmitir todos os sentimentos que acontecem e ficam a “pairar no ar” enquanto decorre todo este ritual. São pessoas muito sós, muito abandonadas, cheias de resignação, um ar triste, mas tão doce…
São imensamente pobres, vivem da caridade dos familiares ou dos vizinhos que são quase tão pobres, com a única diferença de que têm mãos para pegar numa enxada…
Mas agora, graças à Associação têm alguém que se preocupa e que procura cuidar deles. Pelo menos estes 130 doentes de Mepapa estão mais felizes.
Ana Maria Albuquerque”